A lei da felicidade e o direito à tristeza

Micael Olegario
3 min readFeb 20, 2022

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Foto em preto e branco do plenário da câmara dos deputados de fevereiro de 20221. Ao centro é possível ver a mesa diretora e abaixo as bancadas dos partidos e deputados, ao fundo nas laterais é cinegrafistas e as arquibancadas do plenário.
A felicidade se tornou lei e foi aprovada em regime de urgência — Foto: Adriano Machado/Reuters

Em meio a era digital, um país tropical aprovou uma nova legislação, editada como medida provisória e aprovada em regime de urgência no Congresso Nacional. A partir daquele dia em diante, todos deveriam ser felizes, como na música de Caetano, toda a gente era obrigada a ser feliz. Para auxiliar o cumprimento da legislação, o governo Federal iria distribuir através do SUS comprimidos de dopamina e serotonina. E para tranquilizar aqueles sempre preocupados com a responsabilidade fiscal, a origem do financiamento foi apontada, o dinheiro viria da redução de outros recursos destinados ao Ministério da Saúde.

As redes sociais vibraram com a notícia, tão habituadas estavam em fazer o mundo parecer perfeito e as pessoas sempre felizes, agora tinham o governo ao seu lado. É escusado dizer que estas gigantes empresas haviam financiado a campanha de muitos dos excelentíssimos deputados e senadores que aprovaram a nova lei, detalhes irrelevantes.

Claro que houve certo questionamento, mas todos sabiam se tratar de histeria da imprensa e de esquerdistas. Afinal, quem em sã consciência seria contra a felicidade? Estes poucos que lutavam contra a nova lei deveriam ser processados por atentar contra a ordem pública. Um povo sofrendo com a pandemia, tragédias naturais e inflação merecia um pouco de respiro e alegria, para discordar disso só se for um traidor da pátria.

A reação do mercado foi ótima, as ações subiram e a bolsa de valores entrou em êxtase. A produção nacional começou a crescer, e as desigualdades, tragédias e mortes, quando aconteciam, não eram mais motivo para grande comoção. Ora, com exceção de alguns poucos, a maioria da população daquele país não era de coveiros.

E as mudanças climáticas? Foram totalmente desconsideradas como sandices tolas de pesquisadores globalistas e comunistas, que ser feliz demanda tudo para ontem. Quem é feliz não pode perder tempo a preservar árvores, rios e a fauna e flora para as futuras gerações. Tudo era verde, amarelo e bom na terra do carnaval e futebol. Todos eram felizes, era a lei, e sabe-se que todos os cidadãos de bem seguem a lei.

Todavia, passados alguns meses algo estranho começou a acontecer. As pessoas foram se tornando apáticas, sem nenhuma razão aparente. O país inteiro parou igual na música de Raul Seixas, como se fosse combinado, num dia ninguém mais saiu para trabalhar. Mas se a vida agora era só felicidade, o que poderia estar acontecendo? Perguntavam-se aqueles políticos que criaram a lei da felicidade. Bom, os salvadores da pátria esqueceram de considerar a tristeza em seus cálculos.

À medida que a tristeza foi esquecida e a melancolia deixou de ter seu espaço a luz do luar, com ela se foi também a felicidade. Que exceto os incautos e negacionistas, todos deveriam ter a noção de que sem uma, a outra não pode existir. A tristeza e a felicidade são como a Lua e o Sol, dois amantes distantes. São duas faces de uma mesma moeda que se chama vida,

Felizmente para a população daquele país tropical, a democracia ainda era o regime vigente. Depois de quase ter se perdido, quando a felicidade assumiu o trono de ditadora nacional. Então, foi feita a proposta de um plebiscito para se decidir sobre uma outra legislação, o direito à tristeza. E com ele, o direito ao luto, a revolta social, a busca por justiça e por melhores condições de vida. O direito da imprensa livre, para denunciar o descaso, a omissão e o desvio de finalidade no Poder Público.

O plebiscito foi aprovado, ainda que desinformações tenham se disseminado pelas redes sociais sobre os supostos planos nefastos e diabólicos por trás da proposta. E foi através da tristeza, da dor que traz reflexão e suscita ações, que aquela sociedade conseguiu, enfim, sair da imobilidade. E aquele sofrido povo pôde então buscar os seus direitos, o respeito a sua existência e dignidade e a sua real e natural felicidade.

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Micael Olegario

Estudante de Jornalismo — Unipampa. Autor do livro Destinos Casuais. Instagram: @micael_olegario